sábado, 26 de junho de 2010

O Liso do Sussuarão









"(...) E Ana Duzuza me disse, vendendo forte segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passar de banda a banda o liso do Sussuarão. (...) Loucura duma? Para que? Eu nem não acreditei. Eu sabia que estávamos entortando para a Serra das Araras - revinhar aquelas corujeiras nos bravios de ali além, aonde tudo quanto era bandido em folga se escondia - lá se podia por azo de combinar mais outros razoáveis companheiros. Depois, de arte: que o Liso do Sussuarão não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, era um escampo dos infernos. Se é, se? Ah, existe, meu! Eh... (...) Também onde se forma calor de morte (...) A gente ali rói rampa... (...)
Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Sussuarão, é o mais longe - prá lá, prá lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que quando se entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é que dali não avança, espia só o começo, só. "

"(...) o Liso do Sussuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade - feito pessoa!" Jagunço Riobaldo

Hoje o destino é ao norte de Montes Claros. Bem acima da Barra do Guaicuí, pelas bandas da Serra das Araras. Prá´s bandas de lá do Velho Chico. Região vazia entre o São Francisco e ao sul do Rio Cariranha, da cidade de Cariranha, confins da Bahia.

Vamos atravessar o Liso do Sussuarão. Para chegar a Chapada Gaúcha (tem esse nome porque o governo de Minas incentivou a imigração de gaúchos para essa região para o plantio de soja). Lá é o ponto de partida para se conhecer o Parque Nacional Grande Sertão: Veredas.

De Montes Claros ao norte por 80 Km até Mirabela (BR 135, agora para o norte): rodovia em excelentes condições. Depois, sair em direção a Brasília de Minas e Luislândia, para se chegar à cidade de São Francisco, às margens do Velho Chico. Mais 85 Km em estradas muito boas.

Nesse trecho cruzei o Rio Paracatu - rio que o Zé Bebelo desceu com seus 5 catrumanos do Alto Urucúia, em uma balsa de buriti, para ir liderar o grupo do recém falecido Medeiro Vaz.
E perto da cidade de São Francisco se deu o cerco a Zé Bebelo e seus homens, incluindo nessa conta Riobaldo e Diadorim, na fazenda dos Tucanos, onde permaneceram vários dias sob o fogo cerrado de Hermógenes, Ricardão e seus cabras.

Cruzar o Velho Chico de balsa foi emocionante. Aqui as pessoas são diferentes. São mineiros e baianos, são geralenses. Mas um povo com cara mais sofridos, lembrando mesmo os catrumanos dos gerais. Dá uma certa agonia em estar aqui.

Na margem do rio, ribeirinhos tomando banho, pelados, mulheres lavando roupas. O rio em baixa, assoreado, bancões de areia no trajeto de porto a porto. A balsa precisa fazer um zigue-zague para chegar ao outro lado sem encalhar. R$ 2,00 para moto, o cruce. Na balsa, carros, moto (a minha...), caminhões. A balsa é empulsionada por um rebocador, o piloto tem que ser muito bom para levar toda aquela massa gigantesca e a sua inércia até o outro lado sem esbarrar em nada e sem ficar presa ao tocar o fundo do rio.

Chegamos ao outro lado. Por mais 15 km, até o trevo para Pintópolis, asfalto derradeiro, boas condições. Agora, começa a terra, por mais 110 Km até Chapada Gaúcha, passando no caminho pela Serra das Araras.

Geograficamente, essa é a região do Liso do Sussuarão. Na real, presença de serrado. Comecei a sentir o que o Riobaldo havia descrito...

Calor do demo. Nada, nada, nada, nada a não ser o sol infinito, a estrada e o cerrado em volta. Nenhum rio, nem riacho, parece mesmo que a água fugiu daqui. Começa a travessia do Liso!

Aos poucos, os areiões vão aumentando. Trechos com cascalho solto misturado a areia, ruim demais para andar. A areia parece um talco, traiçoeira... (claro, havia murchado os pneus no início da travessia).

Chegou um trecho em que só conseguia andar em primeira marcha. A esperança de que aquilo pudesse melhorar foi embora. Já havia rodado 51 Km a um desgaste imenso. No trajeto, dei uma forçada no joelho numa rabeada da moto. Na hora, não senti nada, mas depois fui percebendo que o joelho esquerdo estava dolorido. Não conseguima mais pilotar em pé nas pedaleiras por conta da dor no joelho. Era lá pela 1h da tarde, o sol castigando forte, eu todo paramentado parecendo um astronauta naquele Liso, um calor medonho, cansaço, sede.

Tomei o que tenho plena certeza ter sido a decisão certa: virei o pé e voltei.

Para manobrar a moto e colocar a testa pro rabo e o rabo prá testa foi um trabalho desgranhado. E a volta foi muito pior que a ida...

Vamos poupar maiores detalhes do sofrimento, os garupas podem imaginar a pedreira enfrentada. Refiz o caminho de volta até Pirapora. Foram cerca de 650 Km, do quais 102 Km de terra no Liso. Devo dizer que foi o trecho mais cansativo que fiz em toda a minha vida (palavra de Iron Butt - muuuito pior que o Saddlesore ou que o trecho na nevasca lá na cordilheira peruana).

Assim, fomos vencidos pelo Liso do Sussuarão. Mas estamos bem e vivos.

[nada que considerasse improvável, a priori. Evidentemente, o que aconteceu era uma possibilidade real. Detalhe, antes de me enfiar lá, havia perguntado a 3 pessoas da cidade de Chapada Gaúcha, e as 3 foram unânimes em afirmar que a estrada estava ótima e que não tinha areião.
Tá certo, não tinha areiãô: a estrada ERA um areião.
Coisas do Liso.
Nunca dá pra saber o que as pessoas querem dizer quamdo dizem se um trecho sem pavimentação está assim ou assado]

Me lembrei das sábias palavras do Ron Ayres: "You never know how bad things can get, when the pavement ends!"

Agora seguimos de Pirapora, somente em trechos on-road. Até lá, até lá! Até lá!

3 comentários:

  1. Também gosto de motos e viajo vez em quando. Estou escrevendo um romance baseado em Grande Sertão Veredas, intitulado OS JAGUNÇOS DO LISO DO SUSSUARÃO
    http://www.augustonsampaioangelim.recantodasletras.com.br/visualizar.php?idt=3226149

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  2. Parabéns! Texto incrível! Relata bem o que é o Liso do Sussuarão. Sou professor de literatura e me ajudou muito! Gratidão!

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  3. Fiz a tal viagem, no começo de dezembro do ano passado. Fui mais preparado: Pajero Dakkar, 4x4, Diesel. Sai de Caruaru, fui ao sertão pernambucano, visitei a área de Canudos na Bahia (Antônio Conselheiro) e, depois, Feira de Santana...Vitória da Conquista, até chegar em Salinas/MG. Em seguida, Grão-Mogol, que é um lugar muito bonito e fiz umas trilhas caminhando. Peguei estrada de terra...sem sinalização e gps..(cada lugar encantador), passei por Botumirim até pegar a BR pra Montes Claros. Cheguei a Pirapora, atravessei o Chico até Buritizeiro. Meu tempo estava esgotando, mesmo assim, ainda percorri cerca de 30km nessa estrada de terra rumo ao Liso do Sussuarão. Muita areia, calor desgraçada. Uma pena que não cheguei até Paredão de Minas. Mas, vou voltar. E irei até esse mardiçoado lugar!

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