quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Nós, o pequeno andino, seu pai, o grande tigre e a nossa condição








Subimos, nesse dia, praticamente do nível do mar, em Tacna, sul do Peru, até o altiplano peruano na cordilheira dos Andes, a quase 5 mil metros sobre o nível do mar.

Passamos, a caminho de Nossa Senhora de Copacabana, na Bolívia,  por Desaguadero, um vilarejo pequeno que ninguém conhece, na margem peruana de um braço do lago Titicaca. Para adentrar na Bolívia, atravessamos pela aduana deYunguyo.

Tudo lá é muito bonito e sinistro ao mesmo tempo.

Já esteve o senhor em Desaguadero, Yunguyo, Nossa Senhora de Copacabana?

Consegue imaginar como é um vilarejo por lá? Como é um posto de gasolina, ter a sua moto abastecida por uma chola? Consegue imaginar como é passar por uma aduana naqueles confins? 

Não conseguimos em geral antecipar o que nos espera. Apesar de haver projetado de antemão que chegaríamos lá, de ter lido muito a respeito, que escalaríamos brutalmente a cordilheira até uma altitude difícil de imaginar em algumas poucas horas, fomos pegos de surpresa pela realidade da concretização de mais uma etapa magnífica da viagem.

Meses antes, durante a preparação, eu sonhei que escalava uma montanha enorme, e lá em cima, terminando de subir uma escada apoiada na enconsta, dei de cara com um tigre enorme que rugia ferozmente a centímetros da minha face - a ponto que eu conseguia sentir o seu hálito - sem, contudo, me atacar propriamente. E eu permaneci algum tempo assim, vivenciando oniricamente o assustador animal na iminência de me exterminar...

Nesse dia, quando atingimos o platô altiplânico, em algum lugar mais próximo do céu em sua concepção bíblica, mitológica, pessoal e real que de qualquer outra localidade fisicamente identificável, avistávamos bem à nossa frente uma muralha de nuvens negras.

Era o tigre da cordilheira rugindo. Uma tempestade que se aproximava.

Já enfrentou o senhor, de moto, uma tempestade na cordilheira?

Paramos a moto para nos acercarmos de que nossas roupas e o equipamento estariam preparados para o confronto.

Descer da moto e realizar alguns simples movimentos cansavam demasiado. Era o ar terrivelmente gélido e rarefeito. 

A paisagem era de uma estepe colinada com elevações maiores além ao horizonte nos acercando. Algumas lhamas indicavam a possibilidade de dois pastores, pai e filho, que do vazio desse paraíso onírico assustador materializaram-se para vir ter conosco.

O menino, uns 8 anos, sorria e nos falava animadamente. Um pequeno andino. O pai, se acercou, e começou a falar de tudo o que havia lá. Lugares que nunca conhecemos, nem concebíamos possíveis ali: lagoas, águas termais, a casa onde moravam, coisas da natureza inóspita local.

Por detrás dele, o tigre rugindo, a tempestade se aproximando. E o ar que faltava.

A recepção ao portal do enfrentamento dos meus limites como animal humano piloto de moto e da natureza inóspita foi, assim, extremamente familiar. Pai e filho acalorada e animadamente nos recepcionavam. Sentia-me estranhamente acolhido por aquele cenário celestial assustador.

Por que as coisas aconteceram assim? Minha vulnerabilidade mostrou claramente o quanto a minha essência existencial, de homem de cidade, estudado, pós-graduado, era próxima daquele pequeno andino que sorria na nossa frente, e do seu pai.

Já viveu o senhor algo parecido? Existe verdade maior do que essa?


O Risco da Aventura (Joseph Campbell)

Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a percorreram antes de nós, o labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas que seguir a trilha do herói e lá, onde esperávamos encontrar um monstro, encontraremos um Deus; onde pensávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos; onde pensávamos viajar para o longe, viajaremos para o centro da nossa própria existência; e onde pensávamos estar sozinhos, estaremos na companhia do mundo inteiro.