quinta-feira, 19 de julho de 2012

O fantástico relato do primeiro confronto...

Logo que chegamos ao arraial, no dia 19, mandei estabelecer o serviço de segurança, postando guardas avançadas nas quatro estradas que ali conduzem em distância conveniente, a fim de evitar qualquer surpresa; nomeei o pessoal de ronda e conservei toda força no acantonamento. O dia 20 passou-se sem incidente notável, a não ser o abandono do arraial à noite e furtivamente por uase todos os habitantes. Das informações que colhi, conta que assim procederam em receio da gente do Antônio Conselheiro. Inclino-me, porém, a crer que se achavam macomunados com este para atraiçoarem a força pública, como o fizeram, pois que até os poucos que ficaram no arraial não foram ofendidos pelos bandidos e garantiram-me antes do combate que ali não havia fanáticos, nem adeptos de Antônio Conselheiro; que este e o seu povo se achavam em Canudos, de onde não sairiam, não obstante terem eles a certeza, quando isso afirmavam, de que os mencionados bandidos se achavam a quatro léguas de distância, dirigidos por Quinquin Coyan e iriam atacar a força na madrugada do dia imediato.

Às 5 horas da manhã do dia 21, fomos surpreendidos por um tiroteio partido da guarda avançada, colocada na estrada que vai ter a Canudos. Esta guarda, tendo sido atacada por uma multidão enorme de bandidos fanáticos, resistiu-lhe denodadamente, fazendo fogo em retirada. Por esta ocasião, o soldado da 2a Companhia, Teotônio Pereira Bacelar, que por se achar muito estropiado, não pode acompanhar a guarda, foi degolado por um bandido. Imediatamente, dispus a força para a defensiva, fazendo colocar em distância conveniente uma linha de atiradores, que causou logo enormes claros nas fileiras dos bandidos. Estes, não obstante, avançavam sempre, fazendo fogo aos gritos de "Viva o nosso Bom Jesus! Viva o nosso Conselheiro! Viva a monarquia!" etc., chegando até alguns tentarem cortar a facão os nossos soldados. Um deles trazia alçada uma cruz de madeira, e muitos outros traziam imagens de santos em vultos. Avançaram e brigaram com incrível ferocidade, servindo-se de apitos para a execução de seus movimentos e manobras. Pelo grande número que apresentavam, foram por algumas praças calculados em 3 mil! Há, porém, nisso exagero, proveniente de erro de apreciação; seriam uns quinhentos, mais ou menos, os que nos atacaram, divididos em vários grupos, que procuraram envolver a nossa força e apoderar-se do arraial, o que não conseguiram devido às enérgicas prividências que tomei, eficazmente auxiliado pelos oficiais e a disciplina das praças. Conseguiu, entretanto, grande número deles, apoderar-se de algumas casas abandonadas, que se achavam desguarnecidas por insufucuência de tropa e de onde nos fizeram algum mal, sendo necessário incendiar as ditas casas a fim de desalojá-los, o que conseguimos depois de algum trabalho. Chegados a esta fase do combate, depois de mais de quatro horas de luta, conhecendo que eles já se achavam desmoralizados, pela dificuldade com que respondiam ao nosso fogo, e porque já tentavam fugir, passei a tomar a ofensiva, e fiz persegui-los até meia légua de distância, morrendo muitos deles nessa ocasião, e ficando o resto completamente desbaratado. Não levei mais longe a perseguição e mandei tocar a retirada, por constar-me achar-se um grande reforço deles um pouco adiante, e por estar a nossa gente cansada e sem alimentar-se desde a véspera. Além disso, cumpria-me reunir os elementos que me restavam, a fim de resistir a uma nova agressão que porventura se desse. Seria um pouco mais ou menos meio-dia, quando terminou essa luta, com o regresso de nossas praças ao acantonamento, sem que durante a perseguição tivesse sofrido prejuízo algum. Na fase mais aguda do combate, houve fogo renhido e incessante de parte a parte, durante mais de quatro horas. Todos os oficiais inferiores e praças portaram-se nessa grave emergência com um heroísmo e uma disciplina sem par, o que muito concorreu para o seu bom êxito, faltando-me palavras com que possa exprimir o procedimento nobre, correto e o entusiasmo de que deram exuberantes provas, honrando assim a corporaçãoa que pertencemos.

Os inimigos deixaram nos campos e dentro das casas que ocupavam mais de cento e cinquenta cadáveres, sendo incalculável o número de feridos que tiveram e dos que foram morrer pela estrada ou dentro da caatinga. As nossas perdas foram aliás insignificantes quanto ao número, sendo, porém, dolorosamente sensíveis e lamentáveis, por terem sido vitimados pelas balas dos bandidos o distinto e temerário alferes Carlos Augusto Coelho dos Santos, o bom e destemido segundo sargento Hemetério Pereira dos Santos Bahia, os valorosos cabo-de-esquadra Manoel Francisco de Souza, anspeçada Antonio Joaquim do Bonfim, soldados Herculano Ferreira de Araujo, Vitorino José dos Santos e João Crisóstomo de Abreu, além do já citado Bacelar, que foi degolado no começo da ação, tendo sido assim a primeira vítima. Ficaram feridos gravemente (cita o nome de 11 praças); levemente (cita o nome de 6 praças). Faleceram também na luta, os paisanos Pedro Francisco de Morais e seu filho João Batista de Morais, que nos serviram de guias, e que se portaram com galhardia na ocasião do combate, juntando-se à força e enfrentando os bandidos. Eram ambos casados e deixaram as famílias sem recursos. Perdemos, portanto, um oficial, um inferior, um cabo-de-esquadra, um anspeçada e quatro soldados, que com os paisanos dão um total de dez homens mortos no referido combate. Me cumpre anotar ainda que alguns casos de morte se deram por excesso de bravura, praticados pelas vítimas que se expunham, sem necessidade, às balas do inimigo. Os cadáveres do oficial e das praças foram cuidadosamente sepultados na capela do arraial, os dos bandidos ficaram insepultos por não dispormos de tempo, de pessoal nem de instrumentos necessários para o enterramento deles. Fomos obrigado a retirar para Juazeiro, na tarde do mesmo dia do combate, não só para evitar o mal que poderia advir da decomposição de tantos corpos, como também pela falta de víveres e outros recursos em Uauá.

Os bandidos estavem armados em grande parte com carabinas Comblain e Chuchu, outros tinham bacamartes, garruchas e pistolas, e quase todos traziam, além das armas de fogo, grandes facões, foices e machados. O Dr. Antonio Alves dos Santos, médico-adjunto do exército, que acompanhou a força, prestou reais serviços durante o combate, tratando as praças feridas com interesse e desvelo, mostrando-se na altura da humanitária missão que lhe fora confiada; tendo, porém, depois de terminada a luta, apresentado sintomas de desarranjo mental, entreguei os feridos logo que cheguei a Juazeiro aos cuidados do facultativo civil, Dr. Antonio Rodrigues da Cunha Melo, que se encarregou do tratamento, fazendo-o com dedicação, solicitude e interesse, operando até algumas praças, no que foi auxiliado pelo cirurgião-dentista Brígido Pimentel, que muito se prestou durante alguns dias, com incansável zelo.

Armamento -  O fuzil Mannlicher, de que se acha ainda armado o batalhão, conquanto seja de repetição e de grande alcance, com o seu projétil dotado de uma força de penetração extraordinária, e dando um tiro de justeza admirável, contudo, não compensa com essas qualidades, aliadas a muitas outras que possui, o prejuízo resultante da extrema delicadeza de seu mecanismo que facilmente se estraga, ficando o fuzil reduzido a simples arma branca, quando adaptado no extremo do cano o competente sabre-punhal. Basta um pouco de poeira ou um simples grão de areia na câmara para que não possa o ferrolho funcionar.

Acontece, além disso, que com o fogo um pouco prolongado, os carregadores não podem entrar no depósito com o número de cartuchos regulamentares, dilata-se o aço do cano que, aumentando o diâmetro, dificulta a introdução dos cartuchos para tiro simples, não podendo a arma funcionar como as de repetição. Daí um grande número de armas incapazes para o seu mister na ocasião oportuna, como aconteceu durante o combate em que tive que tomá-las das mãos das praças, a fim de ver se conseguia fazê-las funcionar, sendo infrutíferos todos os esforços nesse sentido.

Mesmo em muitas das armas que funcionavam, o extrator, peça de grande delicadeza, perdia a necessária justeza e enfraquecida a mola deixava de extrair o cartucho, que tinha que ser extraído à mão, o que prejudicava a rapidez do tiro. Esse armamento não convém ao nosso exército, por não dispor ainda de meios de transporte fácil, rápido e cômodo, de que dispõem os exércitos europeus; não merece a confiança dos oficiais, nem das praças que dele se utilizam, por não poderem contar, com segurança, com seus bons efeitos numa emergência qualquer.

Não obstante os assíduos cuidados que tive pela boa conservação do armamento das praças, pois que, como é intuitivo, do estado dele dependerá em grande parte, em uma dada circunstância, a vitória ou derrota de nossa força, ainda assim tive o desprazer de observar o que venho de referir. Durante o combate muitas armas ficaram também inutilizadas por outros motivos, umas perderam os respectivos ferrolhos que saltavam com a violência do choque na defesa a arma branca, outras tiveram as coronhas partidas a talho de facão ou por balas, muitas sem seus sabres-punhais, e outras com os depósitos arrebentados. A poeira e as escabrosidades das estradas, o calor de um sol abrasador e insuportável, as condições em que foram feitas as marchas, sem comodidade de ordem alguma, tudo isso frustrando meus previdentes cuidados, deram o resultado acima apontado. Acontece ainda que essas armas, que serviram na campanha de São Paulo e Paraná, em 1894, já se achavam bastante usadas, tendo a maior parte delas sofrido consertos. Outras fossem as condições de resistência e solidez de seu mecanismo, e melhor teria sido o resultado obtido na luta.

Fardamento - O das praças que compuseram a força de meu comando ficou bastante estragado, em estado mesmo de não poder servir, devido à ação dos raios solares, da chuva e da poeira e ainda do uso constante que dele fizeram, por necessidade, pois não só marchavam, como dormiam com ele à noite, sobre o solo nu e barrento das estradas, pela falta de barracas; e também pela necessidade de conservar-se a força sempre em armas em sítios cuja topografia nos era desconhecida, e não nos podíamos fiar em informações adrede preparadas, com o intuito de nos iludir. Muitas praças tiveram ainda algumas peças de seus uniformes perdidas por completamente inutilizadas, como fossem túnicas de flanela cinzenta e calça de pano grosso, rasgada pelos galhos de árvores e espinhos das picadas, estradas, etc. Algumas perderam nas marchas os capacetes de couro, outros tiveram no combate os gorros e os capotes crivados de balas ou cortados de facão, em farrapos e ensanguentados. Ainda outros perderam os gorros, tirados pelas balas. O calçado, incapaz de resistir a uma marcha tão longa e por tão maus caminhos, estragou-se, ficando um grande número de praças descalças.

Disciplina - Foi mantida em toda a sua plenitude, sem que tivesse havido infração alguma digna de nota, durante todo o período de meu comando. Quartel da Palma, na Bahia, 10 de dezembro de 1896. Manoel da Silva Pires Ferreira

[Tendo partido de Juazeiro a 12 de novembro de 1896, a força do tenente Pires Ferreira, composta por cerca de 100 praças, chegou a Uauá a 19, depois de uma marcha de 192 Km]

Extraído de: Expedições militares contra Canudos - Seu aspeco Marcial - Tristão de Alencar Araripe     

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