sexta-feira, 25 de junho de 2010

Entrando no Rastro De Diadorim












"Aonde fui, a um lugar, nos Gerais de Lassance, Os-Porcos. Assim lá estivemos. A todos eu perguntei, em toda porta bati; triste pouco foi o que me resultaram. O que pensei encontrar: alguma velha, ou um velho, que da história soubessem - dela lembrados quando ainda tinha sido menina - e então a razão rastraz de muitas coisas haviam de poder me expor, muito mundo. Isso não achamos. Rumamos daí então para bem longe reato: Juramento, o Peixe-Crú, Terra-Branca e Capela, a Capelinha-do-Chumbo. Só um letreiro achei. Esse papel, que eu trouxe, batistério. Da matriz de Itacambira, onde tem tantos mortos enterrados. Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em um 11 de setembro da éra de 1800 e tantos... O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins - que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e para muito amar, sem gozo de amor... Reze o senhor por essa minha alma. O senhor acha que a vida é tristonha?" - Jagunço Riobaldo - Grande Sertão: Veredas

21 de junho: Grão Mogol a Itacambira

Agora entro no rastro de Diadorim. Depois de sua morte, Riobaldo descobre que ela é mulher, e sai à busca do seu rastro, e a única coisa que encontra é o seu batistério, com seu nome de Batismo.

E cá estou eu, na Matriz de Itacambira...


A Estrada

De Grão Mogol a Itacambira pelo trecho na Serra, você segue via asfalto até Cristália (fica a 15 Km de Grão Mogol, seguindo pelo mesmo asfalto tapete-mesa-de-sinuca que eu comentei). Depois, amizade, é só estrada de chão.

Segue em direção até Botumirin e depois a Itacambira.

Condições razoáveis de pilotagem: o fato de ter murchado os pneus (de uso misto - traseiro um Metzeler Tourance normal - para mim o melhor e o dianteiro um Bridgestone TW - o pior do mundo (ainda bem que pararam de fabricar - pior que esse só o BW) - reduzi a pressão dos dois em 30%), e a alteração que fiz na suspensão dianteira (coloquei molas progressivas da Wirth-Federn e troquei o óleo das bengalas por um Motul sintético 10W) deixaram uma excelente segurança para pilotagem na terra. Fiquei surpreso com o comportamento da suspensão. Com isso deu para administrar bem o trecho de 110 Km de terra com ZERO sustos. Nenhuma saída dianteira, bem tranquilo.

Trecho com alguns poucos areiões, principalmente de terra batida e partes com cascalho (tipo um rípio fino compactado) - que deu para tirar de letra (vejam bem, eu não me considero um piloto off road - se eu consegui você aí leitor também consegue!).

Até Botumurim (cerca de 30 Km) a estrada não deixa dúvidas (é só seguir o tramo principal). Depois de Botumurim, você pega a saída para o povoado de Canta Galo, segue por 26 Km, aí tem uma ponte molhada (quando você ver, não vai ter dúvida do que é uma ponte molhada), uma casinha à esquerda, com umas mangueiras, um Mata Burro e uma bifurcação. Pega à direita e toca o pau por mais uns 40 Km (à esquerda vai para o povoado de Canta Galo). Pronto, chegou a Itacambira!

O problema é que depos de Botumirim a estrada tem várias bifurcações duvidosas, e o GPS, amigo, esquece (o mapa do projeto Tracksource tá completamente errado: por causa disso dei uma varada logo no início, tive de voltar e depois passei a ignorar solenemente as indicações do GPS - vou mandar o meu tracklog para os desenvolvedores do Tracksource). Aí é ir perguntando pelo caminho... O duro é que não tem alma viva por aqui. Dei sorte que tinha uma caminhonete indo para o povoado acima que eu esqueci o nome, aí eu tocava o pau na frente, e quando tinha dúvida parava e esperava a caminhonete para perguntar...

Depois da bifurcação a estrada volta a ficar fácil de saber o caminho. Você anda praticamente reto por um chapadão até chegar perto de Itacambira, fica moleza...

Pelo caminho, vários rios para cruzar (alguns com pontes, outros sem, como o da foto, com aquele areião no rebaixo da vereda). Muito legal um pouco de emoção na pilotagem!


A paisagem

Espetacular. Cerradão denso, com veredas e seus buritizais. Sensação de desolamento total, de se estar no sertão mesmo, devido às poucas pessoas que tem por lá:


"Lugar sertão se divulga: é onde se pode torar dez, quinze léguas sem topar com casa de morador, e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade" - Jagunço Riobaldo


Pois é, foi exatamente assim. Muito bom rodar por lugares distantes e intocados. Os eucalipais, muito grandes e constantes no trecho da BR até Grão Mogol, não chegaram por aqui para secar as veredas... (ainda não)

E em todos esses dias, là pelas 1 da tarde a lua já está lá visível no lugar dela.



Itacambira


A cidade foi fruto de um assentamento criado por Fernão Dias Pais Leme, o caçador de esmeraldas, antes de 1700. Itacambira quer dizer: pedra pontuda que sai do mato fechado (fica encrustada na Serra Geral). A Matriz data de 1707 (isso mesmo!): trata-se de um inestimável valor histórico. Seu altar é todo de madeira em um estilo neo-barroco / rococó (as obras de arte da Matriz passaram por um processo de restauramento recente, mas por incrível que pareça, a estrutura da Igreja não, lamentavelmente).

Tive acesso à Igreja, graças à intermediação do secretário de turismo e cultura, Sr. Toni, muito gentil em minha estada por Itacambira. A Igreja mesmo só abre para a celebração da missa aos domingos, no resto dos dias permanece fechada.

Lá tem a pia onde foi batizada Diadorim (vide foto).

Lá tem muitos mortos enterrados (embaixo da nave foram catalogados mais de 300 esqueletos, incluindo algumas múmias que foram transferidas para estudo à Fiocruz) (vide foto).

Uma grande emoção estar nesse lugar tão importante na história de Diadorim e para o nosso patrimônio histórico e cultural. Que as autoridades rapidamente restaurem por completo essa antiga Matriz!


E agora, a notícia bombástica!


Tirei a foto do batistério de Diadorim! (vide foto)

...


O Sr. Toni me falou que o batistério estava lá, em um dos livros de registro da Matriz. Me colocou em contato com a secretária paroquial, Sra Kelly, que me mostrou os livros, mas não sabia em qual estava o tal batistério.

Assim sendo, chamou D. Coló, moradora antiga, dona do cartório da cidade, que me falou que na verdade, já virou e revirou os registros de batistérios de 1800 e tantos, e nunca encontrou o de Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins.

Ou seja, expectativa frustrada.

Eu achava mesmo estranho esse batistério estar lá.

Se ele estivesse, ou Guimarães Rosa teria narrado uma história real de uma pessoa real (improvável), ou teria de utilizado do nome de uma pessoa real para emprestar a Diadorim (ou seja, ususparia o nome de uma pessoa já falecida - também improvável).

Mas se a história é real mesmo, então o batistério não está na Matriz, e sim com o Riobaldo, ou melhor, agora, com um de seus descendentes ou perdido além da Matriz de Itacambira.

E D. Coló aproveitou para me levar à sua casa, e me contou várias histórias do local. Ela é uma grande batalhadora pelo restauro da Matriz. Me falou das diversas cartas que enviou às autoridades, e das respostas que recebeu, fazendo testemunho da importância da igreja. Do que já foi feito, sem dúvida, devemos muito a D. Coló!

E ela também adora Guimarães. E me falou que os lugres acima citados realmente existem próximos a Itacambira. Juramento eu sabia (passei por lá indo de Itacambira a Montes Claros na volta) - inclusive tem esse nome por conta de um juramento, o que Fernão Dias fez, de matar o seu filho por ester tê-lo traído: em Juramento Fernão Dias enforcou seu próprio filho, conta a história.

E também me falou que nos batistérios que pesquisou, viu que na região existiam as famílias Bettancourt e Marins à época!

Que eu saiba Guimarães Rosa nunca esteve em Itacambira. O livro foi publicado 2 anos após ele ter acompanhado a famosa tropa de bois liderada pelo vaqueiro Manuelzão, de Andrequicé, que não passou tão ao norte - chequei todo o roteiro realizado e todas as fazendas onde fizeram pouso. Impressionante o poder do livro: fiel a detalhes que podem passar desapercebidos para muitos leitores, mas quando temos a oportunidade de checar in loco e com atenção o que está escrito, vejam quanta riqueza por traz dos detalhes. Nada está escrito lá a troco de ser insignificante.

Ele sabia bem do local e de seus arredores, sabia que lá havia uma pia, que lá havia muitos mortos enterrados e das famílias que por lá moravam à época. Todas referências reais em apenas um parágrafo. Mais uma prova da genialidade de Guimarães Rosa, que tive a oportunidade de verificar!

Muito agradável a conversa. Terminamos tomando um copo de vinho feito pela D. Coló. Ela abriu a garrafa que estourou como um espumante sacudido, depois ficou saindo uma fumaça tipo Chernobyl e depois o vinho transbordou sobre a mesa...

Espero que ela se anime a colocar no papel as histórias que me contou e imagino que muitas outras demais que sabe. Para que o conhecimento dos sertanejos continue vivo através do testemunho de pessoas como a D. Coló.

Só por isso que eu narrei, a viagem está paga!
[todas as fotos não couberam nessa entrada - as demais estão no tópico seguinte]








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