28 de junho - segunda-feira
"Se deu há tanto, faz tanto, imagine: eu devia de estar com uns quatorze anos, se. Tínhamos vindo parar aqui - circunstâncias de cinco léguas - minha mãe e eu. No porto do Rio-de-Janeiro nosso, senhor viu. (...)
Porto, lá como quem diz, porque outro nome não há. Assim sendo, verdade, que se chama, no sertão: é uma beira de barranco, com uma venda, uma casa, um curral e um paiol de depósito. (...)
O de-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no São Francisco, bem reto ele vai, formam uma esquadria. (...)
Pois tinnha sido que eu acabava de sarar duma doença, e minha mãe feito promessa para eu cumprir quando ficasse bom: eu carecia de tirar esmola, até perfazer um tanto - metade para se pagar uma missa, em alguma igreja, metade para se por dentro duma cabaça bem tapada e brada, que se jogava no São Francisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar no Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa, que na beira do rio tudo pode. Ora, lugar de tirar esmola era no porto. Mãe me deu uma sacola. Eu ia, todos os dias. E esperava por lá, naquele parado, raro que alguém vinha. Mas eu gostava, queria novidade quieta para meus olhos. (...)
Terceiro ou quarto dia, que lá fui, apareceu mais gente. Dois ou três homens de fora, comprando alqueires de arroz. (...)
Depois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos que eu, ou devia de regular da minha idade. Ali estava, com chapéu-de-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim. Não se mexeu. Antes, fui eu que vim para perto dele. Então ele foi me dizendo, com voz muito natural, que aquele comprador era o tio dele, e que moravam num lugar chamado Os-Porcos, meio mundo diverso, onde não tinha nascido. Aquilo ia dizendo, e era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos grandes, verdes.
(...) e continuou explicando: - "Meu tio planta de tudo. Mas arroz este ano não plantou, porque enviuvou da morte de minha tia..." Assim parcesse que tinha vergonha, de estarem comprando aquele arroz, o senhor veja.
Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. (...) Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, (...) só meu companheiro amigo desconhecido.
A ser que tinha dinheiro seu, comprou um quarto de queijo, e um pedaço de rapadura. Disse que ia passear em canoa. Não pediu licença ao tio dele. Me perguntou se eu vinha. Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim. Ele me deu a mão, para me ajudar a descer o barranco.
(...) e nós escolhemos a melhor das outras (canoas) (...). Sentei lá dentro, de pinto em ovo. Ele se sentou em minha frente, estávamos virados um para o outro. Notei que a canoa se equilibrava mal, balançando no estado do rio. (...) O estado da canoa me dava um aumentante receio. (...) Eu não sabia nadar. O remador, um menino também, da lata da gente, foi remando. Bom aquilo não era, tão pouca firmeza. Resolvi ter brio. Só era bom por estar perto do menino. Nem em minha mãe eu pensava. Eu estava indo a meu esmo.
Saiba o nenhor, o de-Janeiro é de águas claras. E é rio cheio de bichos cágados. (...)
Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura: imensidade. Medo maior que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A feiura com que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para si o de-Janeiro, quase só um rego verde só. -"Daqui vamos voltar?" - eu pedi, ansiado. O menino não me olhou - porque já tinha estado me olhando, como estava. -"Para que?" - ele simples perguntou, em descanso de paz. (...) O canoeiro (...) foi entrando no do-Chico, na beirada, para o rumo de acima. (...)
Mas sério, naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao canoeiro, com uma palavra só, firme mas sem vexame: - "Atravessa!" O canoeiro obedeceu.
Tive medo. Sabe? Tudo isso: tive medo! Enxerguei os confins do rio, do outro lado. Longe, longa, com que prazo se ir até lá? Medo e vergonha. (...) Não pensei nada. Eu tinha o medo imediato. (...) Alto rio, fechei os olhos.(...) Quieto, composto, confronte, o menino me via. -"Carece de ter coragem..." - ele me disse. Visse que vinham minhas lágrimas? Doí de responder: -"Eu não sei nadar..." Omenino sorriu bonito. Afiançou: -"Eu também não sei.". Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziam uma luz. -"O que é que a gente sente, quando tem medo?" - ele indagou, mas não estava remoqueando, não pude ter raiva. -"Você nunca teve medo?" - foi o que me veio, de dizer. Ele respondeu: -"Costumo não..."
(...) Amanheci minha aurora. (...) Aí, o desejado, arribamos na outra beira, a de lá." - jagunço Riobaldo
Hoje passeei de barco pelo Rio São Francisco. Para isso, contei com os serviços do Sr. Norberto, pescador nessas bandas há mais de 50 anos. Sabe muito do rio. Contador de várias histórias, falou muito sobre o Chico nesse tempo todo em que esteve por lá.
[recomendo: para achá-lo, seguir de Três Marias sentido Brasília, e ao passar a ponte sobre o Rio São Francisco, entrar à direita, descer em direção ao rio, seguindo as placas da Pousada Canto do Rio. Na pousada, pergunte pelo Seu Norberto: ele mora colado na pousada]
Navegamos de lá até a barra do de-Janeiro. Fomos até o porto do de-Janeiro. Pude conhecer o lugar onde Riobaldo conheceu Diadorim. Pude saber mais sobre o Velho Chico. Encontro emocionante.
Depois caminhamos até a capela que o vaqueiro Manuelzão fez em homenagem à sua mãe, que falecida, enterrou alí perto, e onde todo ano celebrava a Festa de Manuelzão.
Muitas coisas mudaram no Chico. Agora, ele não é barrento (fica barrento só em época que chove mais; por conta da represa, as partículas são decantadas, e a água é clara). Assim, o que se vê hoje é o inverso do relatado no livro: o de-Janeiro turvo entrando no São Francisco claro.
Da capela do Manuelzão, sobrou nada. No lugar, outra capela construída em 1987. Só o cruzeiro está inteiro à frente. Esbarrando, a amurada de um cemitério, que fica ao lado. Perdeu-se o lugar, lamentavelmente. Podiam ter cuidado desse lugar tão importante para o Manuelzão e eternizado na obra Roseana. Só na obra, porque na real, sobrou só o cruzeiro, lamentavelmente, repito.
E se a mãe do Riobaldo não tivesse feito a promessa?
E se Riobaldo não tivesse sarado a tempo?
E se o tio de Diadorim não tivesse enviuvado?
E se Diadorim e seu tio não tivessem ido comprar arroz no porto?
E se Riobaldo não tivesse tido coragem de acompanhar Diadorim?
O acaso ou o destino dominam nossas vidas?
Como o Riobaldo disse, ali foi a sua aurora. Aqueles grandes olhos verdes mudaram sua vida. Na travessia do Rio, a metáfora da travessia da vida.
"Viver é muito perigoso" - Riobaldo repete isso várias vezes no livro. Carece de se ter coragem, carece de se ter muita coragem...
Amanhã, Cordisburgo. A cidade do coração. Até lá, até lá. Até lá!
[assistam a história acima em curta-metragem filmado por esses mesmos lugares que eu passei, de Marily da Cunha Bezerra, entitulado: Rio-de-Janeiro, Minas, no link abaixo:
Grande Catania!
ResponderExcluirShow de bola a aventura, lindas fotos!!!
Abração!
Estamos ai na garupa...
Cleber e Fernanda